domingo, 2 de abril de 2017

A MÚSICA NÃO SE RESTRINGE A FRONTEIRAS



- Dilmar Paixão –
(professor, escritor e poeta)

               Acabou de ser entregue o troféu The Voice Kids ao novíssimo encanto bombachístico denominado Thomas Machado. Poucas vezes, nestas quase seis décadas da minha existência, assisti à unidade rio-grandense numa única torcida de chimangos e maragatos, gremistas e colorados, enfim, desprovida desses dualismos que, historicamente, dividem as cores e espaços no Rio Grande do Sul.
Lembrei-me, quando sentava para ver e ouvir a consagração do nosso menino gauchinho, do jogo da seleção brasileira contra toda a pátria ultrajada do jogador Everaldo, esquecido da convocação por Zagalo após o êxito futebolístico da Copa do Mundo de 1970. Naquela ocasião, o único tricampeão não chamado para o selecionado. Thomas Machado conseguiu esse feito. Talvez, tenha-o superado.
As inúmeras particularidades que construíram a sólida vitória do cantor de Estância Velha permanecerão vigentes por longa data. Desde o seu jeito meigo da criança com vivência artística às respostas improvisadas e naturais de quem tinha a decisão certa do que estava fazendo na disputa e para a qual havia se preparado com afinco.
O fato de estar trajado com roupa de gaúcho, ao estilo típico do cotidiano urbanizado de quem possui ligações campesinas e tradicionalistas impactou, pois todos conhecem esse traje oficializado como a representação típica do Rio Grande do Sul. Sua treinadora, a cantora Ivete Sangalo, fez o destaque ao seu modo de vestir na primeira apresentação, fazendo saudação à figuração estilística. Porém, não foi pelo traje, pois não há situação mais traiçoeira do que alguém sem o hábito de andar pilchado querer fazê-lo apenas para chamar a atenção. Nele, era um vestir e se postar natural.
O desafio foi além. Em momento algum, Thomas pode interpretar canções do seu repertório habitual; pelo contrário, fizeram-no entoar canções em todos os ritmos como “A Banda”, o “Menino da Porteira”, o “Rancho Fundo” ou a tradicional “Asa Branca”.  Esta, tradicional sim, mas na tradicionalidade do repertório nordestino ou do artístico sertanejo e não um preferência de escolha no Rio Grande do Sul.
Thomas nesse aspecto superou longe seus concorrentes. E continuou pilchado. Sua pilcha era a vestimenta e o portar de quem, após o primeiro dia, perdeu uma escora importante, quase muleta, que era a sua gaita, o acordeon e a parceria do irmão mais velho. Ele foi superando cada um dos obstáculos. Derrubou as barreiras uma a uma e sempre encantou os telespectadores.
Não querendo criticar os demais, mesmo gaúchos ou de outros locais com representatividade folclórica e cultural, pode-se presenciar jovens intérpretes cantando em inglês, espanhol, francês e em ritmos diferentes, inclinados para angariar simpatias e votos populares. Nossos cantores e cantoras que subiram aos palcos pelas primeiras vezes nos festivais nativistas também seguiram o molde tendencioso do repertório escolhido pela produção do programa. Se nosso estilo musical do regionalismo gaúcho não figurou entre as opções musicais para os candidatos, poderiam ter oportunizado cantigas livres em algum momento, mesmo que no instante final ou pós-vitória. Thomas estaria muito mais à vontade. Certeza absoluta.
Vale destacar, além da sua competente consagração, que o gauchinho, mesmo pilchadito, não se encabulou em cantar ritmos diferentes e cantigas nem tão suas, quanto das outras crianças. Muitas, nem estão listadas como cantigas universais como quiseram fazer parecer. Importante, sim, salientarmos que o nosso cantor vitorioso demonstrou como a arte pode ser praticada sem, necessariamente, ser exclusiva do seu meio específico de convivência social e artística.
Por diversas vezes, pude presenciar intérpretes e musicistas da nossa terra executando manifestações artísticas de outras regiões do Brasil e do planeta. Aproveito para sublinhar dois alertas interrogativos: o primeiro, se nossos artistas entoam ritmos e cantares de outros povos quem fará a representatividade da nossa cultura musical?  A segunda pergunta é: o que continua faltando para que nossas canções do regionalismo gaúcho possam ultrapassar as fronteiras que, no caso, nos limitam mesmo com os povos vizinhos?
O intuito deste comentário não é aprofundar análises mais densas, porque a oportunidade é de comemorações merecidas e de aplausos ao Thomas e seus familiares que acreditaram na chance e agora recebem o apoio midiático e empresarial para desenvolvimento da sua novel carreira artística globalizante.
Se ele merece – e mereceu mesmo – celebremos a sua conquista e faço votos que não desapareçam os estímulos que uniram tanta gente e de aldeias diferentes. Como afirmei no início, foi mais uma das raras manifestações da unidade rio-grandense. Tudo de bom, para a época em que sofremos e sobrevivemos com amarguras de problemas crescentes no nosso Estado e com tanta desumanização nos relacionamentos entre as pessoas.
Muitas lições, inclusive, a da humildade de quem se portou convicto e confiante, contudo, respeitoso antes os demais participantes do programa. De parabéns, portanto, o Thomas, seu pai, sua mãe e o irmão. Como ele mesmo disse, todas pessoas que torceram por ele, de alguma maneira, vitoriaram-se com o Thomas.
Já que a canção nordestina, universalizada “Asa Branca” do Luiz Gonzaga, foi a cantiga da última etapa da competição, tem um refrão forte que serve para parodiarmos em cumprimentos ao nosso gauchinho campeão, tenha certeza tchê que “nem foi tamanha, assim, a judiação”!  A alegria de aplaudi-lo foi recompensada. Se a nossa música gaúcha mais representativa não pode receber o espaço que o faria mais tranquilo e destacado ainda pelo seu hábito artístico cotidiano, pelo menos, alguém que sempre esteve de bombacha serviu de exemplo. E do alto dos seus nove anos de idade. Um novo Everaldo, com certeza. Mais: pilchadito de bombacha e abraçado, com orgulho, na bandeira do Rio Grande do Sul.


Proseamos mais de outra feita, tomara com mais alegrias incontestáveis!


Partenon, Porto Alegre, 02 de abril de 2017. 

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