Série de reportagens publicada deste domingo até terça-feira conta a história de três profissões que carregam consigo a história do Rio Grande do Sul
Há tradições gaúchas tão antigas quanto o Rio Grande do Sul. Certos processos, profissões, métodos, práticas e produtos são praticamente os mesmos ainda hoje, quase dois séculos depois que os farrapos se rebelaram contra as pesadas taxas instituídas pelo Império do Brasil sobre os produtos que saíam da Província de São Pedro _ charque, couro e graxa animal entre eles. Em atividades ligadas ao campo e suas lidas, ainda sobrevivem bastiões dos idos farroupilhas por todo o Estado. Cuteleiros, produtores de charque e domadores podem ser considerados guardiões das tradições farrapas. São eles que Zero Hora irá mostrar, em uma série de reportagens especiais publicadas deste domingo até terça-feira. Confira a primeira parte, o trabalho dos domadores.
Na cidade, é hábito chamar o homem do campo de grosso, xucro ou bagual. Esses e outros adjetivos que remetem à rusticidade rural são entoados muito em razão da rudeza das mãos calejadas e do rosto castigado pelo sol, mas principalmente pelas palavras que engendram um dialeto gaudério particular, proferidas em tom visto como exótico e quase ríspido. "Um homem desses não chora", apostaria um vivente recém-chegado da Capital à Campanha.
Quem diria que o gabrielense Vladimir da Rosa, 39 anos, dono da estância Tapera do Silêncio, em São Gabriel, sofre ao se separar dos cavalos xucros que transforma em dóceis e obedientes após meses e meses de trabalho árduo? Pois sofre, contém-se e não chora mas por pouco.
Cada potro que vai, leva um pedaço de mim confessa o domador.
O Vladimir que quase deixa escapar uma lágrima ao lembrar uma égua domada há alguns anos é o mesmo que usa, ainda hoje, um método de manejo semelhante ao adotado para amansar os cavalos em séculos passados. Na técnica tradicional, a relação com o animal, na maioria das vezes, é rude. Diferentemente da racional surgida da ideia de se causar o menor desconforto possível ao animal , a domação (confira o dicionário abaixo) antiga envolve sinais sonoros e puxões, com a intenção de mostrar ao bicho xucro o significado dos comandos de rédeas.
É como um jogo de xadrez em que o cavalo é o rei, e o peão, a peça do xeque-mate. Já no primeiro galope, Vladimir emite sons ininteligíveis para os humanos, mas significativos para os animais algo como pssss e pupupu. Enquanto homem e cavalo medem forças, um ou dois amadrinhadores galopam ao lado em cavalos mansos, obrigando o animal xucro a tomar a direção desejada e evitando que corcoveie e se jogue para trás, caindo sobre o domador um dos desesperados reflexos dos bichos na ânsia de se livrarem dos dominadores.
Ao fim da cada dia de trabalho, Vladimir demonstra ao animal que não pretende dominá-lo, mas conquistá-lo. Carinhosamente, esfrega as mãos sobre as narinas do bicho, para que o cavalo sinta o seu cheiro, acostume-se a ele e crie entre ambos um elo de confiança.
Depois de 26 anos de lida, Vladimir aprendeu a distinguir os avisos sonoros e visuais dos animais e, assim, consegue se precaver de coices e manotaços. Cavalo bufando, com olhar seco, está bravo e agressivo. Com olhar úmido, silencioso e sorumbático, está sereno e entregue à doma. Daí que o domador deve, antes de tudo, ser um homem sensível. Não desses que choram por qualquer coisa, mas daqueles que sabem entender a aflição de um animal xucro diante do medo e do desconhecido.
É o bicho que doma o homem
Depois de sucumbir ao laço, o cavalo xucro e sestroso bufa e relincha, preso ao palanque. Junto à tora de pelo menos 40 centímetros de diâmetro, a aproximação do domador que durante meses terá a difícil missão de condicionar o animal a seguir comandos quando montado é um momento tenso.
Nervoso, o bicho se move para os lados. Corcoveia. Com assovios curtos, Tiago Pereira, 33 anos, aprochega-se pé ante pé, mas com segurança. Embora o laço seja uma etapa complicada, com o pesado animal tentando se desvencilhar da corda, a lida no palanque é ainda mais delicada, em razão de o domador estar no raio de ação para um ato reflexo do bicho, assustadiço mesmo os homens mais fortes são muito mais frágeis fisicamente do que um cavalo.
Por isso, ao mesmo tempo em que mostra quem está no comando, Tiago não se arrisca a um manotaço ou a um coice. Natural de São Gabriel, na Campanha, a 321 quilômetros de Porto Alegre, o capataz da Estância Bela Esperança está sempre atento ao olhar, aos sinais e aos movimentos do cavalo. Segundo Tiago, os animais têm personalidades próprias e comportam-se de maneira diferente uns dos outros.
Tem os mais inteligentes, os mais rebeldes. Cada cavalo te ensina um pouco. Cada doma é um aprendizado sentencia.
A domação é um processo longo, que dura pelo menos 10 meses, mas geralmente passa de um ano. Nesse período, a cada dia, repete-se um exercício de galope até que o animal esteja suficientemente manso para obedecer aos comandos de quem quer que seja. Em geral, os cavalos são preparados para pelo menos três situações: montaria, lida campeira (camperear, laçar etc.) e prática de esportes como hipismo ou polo. As primeiras alternativas predominam no interior gaúcho.
Em todo o processo, o domador age como um pai que precisa educar um filho: com carinho e pulso firme. Ao redor do palanque, maneia as patas do cavalo, introduz o buçal e, finalmente, o bocal, com o qual fará a domação. Os dois últimos passos são dados com o animal deitado maneado pelas patas, o bicho é jogado ao chão, lateralmente, para facilitar o trabalho do domador.
Dito dessa forma parece simples. Mas não é. Amansar um animal praticamente selvagem, com 350 a 550 quilos de ossos, carne e músculos, exige força e jogo de cintura do domador e de seus ajudantes um ou dois peões, dependendo do bicho e da etapa de treinamento. Por isso, cada passo do laço à colocação do bocal é uma conquista, obtida após semanas de lida, à custa de suor, tato, artimanhas e inteligência.
Vencida a primeira etapa, é chegada a hora do primeiro galope, o momento mais emblemático da doma. É quando, pela primeira vez, o animal xucro, quase selvagem, terá sobre o seu dorso um corpo estranho. Como cada cavalo reage de forma diferente, o domador precisa estar preparado para tudo. Quando Pereira assume as rédeas, o bicho corcoveia, nervoso, como em uma gineteada.
Auxiliado pelo amadrinhador que, montado em um cavalo manso, encosta-se à sua montaria para conduzir o rumo do galope, Pereira dá de rédeas, mandando o xucro avançar, ou se deita para trás usando todo o peso do corpo, mostrando ao bicho que é hora de parar. Exaustivo para o domador e para o cavalo, o trabalho é essencial para que, aos poucos, o animal incorpore e aceite o sentido das ordens e dos movimentos do bicho homem.
Pereira começou a aprender as funções dos peões com apenas nove anos, trabalhando ao lado do tio, em uma estância. Aos 13, começou a domar. Depois de 24 anos amansando cavalos quase selvagens segundo ele, mais aprendendo do que ensinando , chegou a uma conclusão inusitada:
Quando tinha 13 anos, eu era mais bruto, mais bagual. A verdade é que gente não doma o cavalo. O cavalo é que doma a gente.
DICIONÁRIO DA DOMA
Bocal: tira de couro macia usada sobre a boca do cavalo durante a doma
Buçal: cabresto em formato de focinheira
Coice: patada dada pelo cavalo com os membros traseiros
Domação: o mesmo que doma
Manear: prender as patas do cavalo de forma a impedir que movimente apenas uma de cada vez e golpeie o domador ou saia correndo
Manotaço: patada dada pelo cavalo com os membros dianteiros
Palanque: tora na qual o cavalo é amarrado, facilitando a aproximação e a lida do domador
"Pupupu": sinal sonoro feito por alguns domadores para o cavalo seguir
"Pssss": sinal sonoro para o cavalo parar
Rédea: corda ou correia presas ao freio da cavalgadura e que serve para guiá-la
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