sábado, 19 de setembro de 2015

Conheça profissões típicas do interior



Histórias gaúchas

ZH selecionou histórias de trabalhadores de três regiões do RS

Por: Júlia Otero, Luísa Martins, Micheli Aguiar e Vanessa Kannenberg*
01/05/2014 - 06h06min
Elisa Bertram faz cucas, tradição de Santa Cruz do Sul, há mais de 22 anos Foto: Vanessa Kannenberg / Agência RBS
Não é que elas sejam exclusivas daqui. Mas, em solo gaúcho, algumas profissões ganharam novos contornos e, muitas delas, acabaram dando cara a determinadas regiões do Estado.

É o caso das cuqueiras, no Vale do Rio Pardo, dos sapateiros artesanais, no Vale do Sinos, e, no Sul, do jurupigueiro de Rio Grande e da professora de pomerano em Canguçu. Neste Dia do Trabalho, ZH resolveu homenagear esses profissionais e contar histórias singulares, mas que estão diretamente ligadas à história do Rio Grande do Sul.

VALE DO RIO PARDO
Das mãos das cuqueiras, nasce a iguaria alemã com toque gaúcho
O cheiro da cuca é inconfundível. No Vale do Rio Pardo, região colonizada em grande parte por alemães, é sinônimo de cheiro de infância. Cheiro de casa da vovó, ou melhor, da Oma. Mas o tradicional bolo de massa doce e cobertura generosa de flocos de açúcar (chamada de Streusel) ou de uva, ou de framboesa, ou de coco... não se restringe ao aconchego familiar. Pelas mãos das cuqueiras, essa delícia originária da Alemanha chega aos quatro cantos do Estado.

> Conheça a história de Elisa, cuqueira de Santa Cruz do Sul
De acordo com a professora Lissi Bender Azambuja, doutoranda em antropologia cultural e autora de três livros bilíngües sobre a culinária alemã e gaúcha, a "Kuchen" veio para o Rio Grande do Sul na bagagem imaterial dos imigrantes alemães, há 190 anos. Depois de muitos anos restrita ao feitio caseiro, a produção de cucas tornou-se opção de diversificação às lidas do campo e, principalmente, ao cultivo de tabaco. Aqui, ganhou toque gaúcho, com frutas locais e novos sabores.
— Não há registro de quando a profissão foi oficialmente criada, nem quantas cuqueiras existem hoje em dia. O que sabemos é que a cuca é um importante e saboroso legado cultural e que, pelas mãos talentosas dessas profissionais, é levada a muitos lugares — comenta Lissi.
Aos 38 anos, Clarine Gressler não lembra em que momento aprendeu a fazer cuca. A mãe, da mãe, da mãe, da mãe dela já fazia. E a receita foi passando de geração em geração. Mas foram ela e a mãe, Clarisse Gressler, que hoje tem 69 anos, que decidiram tornar a receita um negócio. Depois de alguns anos vendendo informalmente a vizinhos, em 1998, elas abriram a Kuchenhaus (do alemão, casa da cuca), que, hoje, faz parte da Rota Germânica.
Situada na rodovia que liga o interior à Região Metropolitana, a RSC-287, a padaria Lisaruth é uma das grandes responsáveis por disseminar a cuca pelo Estado. Atualmente com 24 sabores no cardápio, o estabelecimento usa e abusa das frutas e não é a toa que a campeã de vendas é a de coco, seguida pela de uva. Mas em 2012, uma cuca feita de com nozes, morangos, leite condensado e fios de ovos, garantiu o primeiro lugar no concurso da Oktoberfest, de Santa Cruz do Sul.
— O segredo está na massa, com 20% de açúcar, e que deve ser bem sovada, pra ficar macia. Depois, tem que esperar o momento certo para colocar o recheio. E nisso não se pode poupar, é o diferencial da nossa cuca para a italiana e até mesmo para a original alemã: mais recheio e menos massa — confidencia Elisa Bertram (na foto acima), 37 anos, uma das proprietárias da Lisaruth junto com três irmãos e os pais.

SUL
O traguinho do bom humor

Hermes da Silva Dias produz jurupiga na Ilha dos MarinheirosFoto: Fábio Gomes/Especial

O que Hermes da Silva Dias faz é mais que ofício: é uma honra à família que herdou dos portugueses — colonizadores da Ilha dos Marinheiros, localidade de Rio Grande, no sul do Estado — o talento para produzir jurupiga, bebida típica da região. Tem gente que se embreta na ilha apenas para visitar a lojinha montada há 15 anos na garagem de uma casa simples, amparada pela Capela de São João Batista, que fica logo ao lado.
Garrafas de todos os tamanhos — todas reaproveitadas de galpões de reciclagem ou doações — se espalham pela loja, todas com o mesmo conteúdo: uma bebida artesanal à base de uva, com teor alcoólico entre 18% e 20% (maior que o do vinho tinto comum, que fica em torno de 12%) e que foi considerada, em 2010, patrimônio cultural da cidade de Rio Grande.
Esmagar a uva, retirar a "nata" antes da fermentação (pois só assim fica docinho), adicionar o álcool de cereais e deixar a mistura ganhar consistência nos tonéis — processo que pode levar até três meses — foram passos que Hermes aprendeu com o avô e que, até quatro anos atrás, encarava apenas como hobby. Quando o avô morreu, uma forma de homenageá-lo foi levar a jurupiga a sério. Hoje, é dela que a família tira
100% do seu sustento.
Dá e sobra para viver em uma localidade de menos de 2 mil habitantes, dedicados principalmente à pesca e à agricultura. Absolutamente livres de agrotóxicos, os 600 pés de uva cultivados na propriedade dos Dias rendem 4 mil quilos da fruta por ano. Com isso tudo, dá para fabricar de 8 a 10 mil litros de jurupiga por safra. Dependendo do tamanho da garrafa, o traguinho assemelhado com um vinho do Porto chega ao consumidor por preços que variam entre R$ 7,00 (250ml)  e R$ 25,00 (1 litro).
— As pessoas compram para si, para oferecer aos amigos em casa ou para presentear alguém — diz o jurupigueiro, que comemora o fato de seu produto chegar a vários países do mundo: o livro de visitas conta com assinaturas de turistas de Moçambique, França, África do Sul e Argentina.
Produzir jurupiga é também uma forma de resgate à memória da Ilha dos Marinheiros, ferida por uma enchente que, em 1941, dizimou os parreirais na região.
— De lá pra cá, ficou todo mundo receoso. Diziam que a Ilha tinha sido infestada por uma praga e que nunca mais alguém conseguiria fazer vingar uma uvinha sequer na região.
Contrariando a lenda, Hermes e Rosângela pesquisaram em livros, juntaram o que haviam aprendido com os avós sobre poda e espaçamento de plantio, trocaram informações com produtores de outras regiões e, com o sucesso, despertaram de novo a esperança de não precisar mais "importar" uva da Serra para produzir jurupiga no sul do Estado.
Hermes e Rosângela não sabem precisar o quanto investiram na fábrica, mas chutam em um valor bem menor que R$ 50 mil.
— Quase tudo herdei do meu avô. Com orgulho e bom humor, a gente também torna as pessoas mais soltas e risonhas — brinca.
VALE DO SINOS
Sapato artesanal feito por quem tem 40 anos de experiência


Riegel mantém uma fabriqueta na frente de casaFoto: Charles Dias/Especial
Eloir Lauro Riegel mantém viva uma profissão que conta os dias para um fim melancólico depois de anos de louros: é sapateiro. Dono de uma pequena fabriqueta em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, Riegel de 54 anos tem 40 dedicados à produção de calçados artesanais.

— Eu não sei se seria outra coisa. É a única profissão que eu tive na vida — afirma, lembrando que chegou na Capital Nacional do Calçado aos 16 anos e logo já estava empregado em um fábrica.

— Eu não era registrado, mas aprendi a passar cola, a mexer na prensa, a fazer sapato.

O hamburguense de coração, como gosta de dizer, veio buscar o seu eldorado nos anos de ouro da produção, quando Novo Hamburgo era a maior produtora e desenvolvedora de sapatos no país. Quatro décadas depois, o que conseguiu foi uma pequena fabriqueta de 30 metros quadrados na frente de casa. Longe das grandes negociações almejadas, Riegel lamenta ter perdido cerca de R$ 100 mil em calotes ao longo da jornada. Mas não se arrepende. Segundo ele, "são coisas da vida".

Com a ajuda da esposa, Odete Teresinha Riegel, "costureira de mão cheia", ele produz entre 20 e 30 pares por dia. Os sapatos femininos e masculinos são vendidos em lojas do Vale do Sinos e "até de Torres". A rotina de trabalho não é fácil. O casal levanta antes do sol nascer e encara um jornada que termina depois da novela.

— A gente tem que trabalhar, porque senão a coisa não dá certo — afirma Odete, que deixou o emprego em uma empresa grande de sapatos para ajudar o marido na fábrica da família.

A fabriqueta é simples. Os equipamentos antigos. O diferencial do produto fabricado, talvez, seja o carinho que os Riegel colocam em cada pé de sapato produzido. Em couro legítimo, como gostam de enfatizar, as botas, alpargatas e chinelos são todos concebidos pelo o casal, que, inclusive, pesquisa em revistas e na Internet os modelos que serão fabricados.

— Eu não sei quanto tempo ainda haverá sapateiros assim como eu, mas quero poder me aposentar fazendo sapato — afirma Riegel, sonhando com o repouso na velhice.

SUL
O idioma sobrevivente


Professora Tanise ensina língua pomerana, extinta na Europa Foto: Marcel Ávila/Especial

Em Canguçu, na sala da 1ª série do Ensino Médio da Escola João de Deus Nunes, de longe se escuta:

— Nei, ió.... — declamam os estudantes, decorando o "não" e "sim", respectivamente.

A língua pomerana, até pouco tempo falada apenas entre os parentes mais antigos, agora está sendo ensinada no colégio. O projeto começou neste ano após a descoberta da real descedência:

— No interior, achávamos que éramos imigrantes alemães, mas fomos a um congresso e descobrimos que somos pomeranos. A língua que falamos não é alemã, mas pomerana, que é mais parecida com inglês do que com alemão — conta a professora Tanise Stumpf Bohm.

A língua pomerana é extinta na Europa hoje e sobrevive somente no Brasil, pois alguns descendentes vieram para Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Por aqui, os redutos de colonização estão no interior de Canguçu e São Lourenço do Sul.

Apesar da explicação oficial ter chegado só agora, a população há muito tempo mesclava o alemão típico com o pomerano. Nos bailes de 15 anos e casamentos, bandas com esses idiomas estrangeiros são a atração principal.

— Na minha festa vai ter, viu? — se exibe uma aluna para a professora.

Tanise dá aulas de português há mais de 10 anos, mas depois de saber da origem, resolveu correr atrás de dicionários e livros técnicos que pudessem embasar o conhecimento. Um xerox de um dicionário com tiragem esgotada apaga as dúvidas. As classes foram propostas depois que o colégio passou a oferecer espanhol como segunda opção de língua estrangeira. Além do inglês, agora os estudantes podem decidir se estudam a língua latina ou o pomerano.

— Pensei que ia ter poucos, mas olha isso! — se emociona ao ver a sala cheia, com mais da metade dos alunos de todas as 1ªs séries.

O entusiasmo foi tanto que o colégio até fez um festival sobre a cultura pomerana, com direito a danças típicas e participação de outras escolas. Agora, já planejam uma segunda edição. De certo, estará escrito para os visitantes o mesmo que estava no quadro quando a reportagem chegou: "Gaur Ankoomen" (sejam bem-vindos). 

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